Os indiferentes

Comecei a trabalhar muito nova e muito nova me habituei a cumprir obrigações.
O vencimento era o estipulado por Lei. As regalias eram as determinadas para todos a mim iguais. As obrigações, essas mudavam constantemente, conforme os meus superiores queriam mostrar serviço e dar nas vistas. E como a própria palavra indica... eram obrigações.
Algumas novidades que surgiam e se lembravam de exigir, logo a seguir eram postas de parte e substituídas por outras, igualmente efémeras, imprestáveis e sem resultados práticos de qualquer valor, porque tudo era feito apenas para mostrar que o que existia não prestava.
Já eu trabalhava quando o 25 de Abril aconteceu e parecia que tudo de errado tinha sido feito até aí e tudo de certo passaria a fazer-se...
Eu nunca me entusiasmei muito com política e sempre desvalorizei os grandes títulos dos jornais que tanto assustava quem convivia comigo.
Nunca fui para a porta do supermercado a marcar vez para comprar leite e conservas, com medo de uma revolução. Nunca enchi a banheira de gasolina, nem a varanda de bilhas de gaz. Não foi por espírito de contradição, sentia mesmo que não valia a pena. Tudo me soava a trovoada de Verão.
Continuei a trabalhar todos os dias e a cumprir com todas as obrigações que os chegados de novo impunham, depois de acharem, como era costume, que as existentes estavam erradas e tinham de ser alteradas com urgência. Metade do meu esforço era compreender o que pretendiam de mim e adaptar-me a fazer o mesmo, mas de forma diferente.
Revoluções foram acontecendo sempre daí para cá.
Caíram governos e surgiram governos, fizeram leis e revogaram leis e eu sempre no meu dia a dia igual... de cumprir com o que me ordenavam.
Tenho tido mais chefes a darem-me ordens, do que colegas a desempenhar as tarefas comigo.
Todos chegavam com o saber na pasta e daí a pouco tempo outros chegariam e os obrigariam a partir, tal como eles tinham feito.
As grandes lutas nunca foram minhas, nunca senti que adiantassem alguma coisa, pois com o passar dos anos confirmei que tudo tinha um percurso muito igual, tudo era demasiado previsivel, além de que para se ter voz se tem de ter poder e o poder não se adquire a trabalhar todos os dias cumprindo obrigações. Só com poder se pode falar e sair impune.
A meio do ano passado remodelaram todo o meu serviço e deram-nos formação para pôr em prática as ideias que algumas mentes escolhidas acharam que revolucionariam a minha profissão e obrigariam aqueles que fizeram "mal feito" o seu trabalho durante dezenas de anos, o passassem a fazer bem feito.
Parece que vai tudo mudar outra vez... mal me adaptei aos nomes complicados e aos sistemas rebuscados e aí vem mudança de novo!
Acusam-me de tudo ser assim, por causa de pessoas como eu. Que deveriamos falar, em vez de comer e calar!
Eu, como todo o povo, sei pouco, trabalho muito e gasto as minhas energias a lutar por me adaptar e cumprir o que, mesmo assim, me dá direito a ter o mínimo com que pagar as contas a tempo. Sou filiada no maior partido do meu país - O partido dos indiferentes.
Foi a nós que prometeram mundos e fundos, porque nós somos os degraus para poderem chegar lá acima. Foi a nós que desiludiram em primeiro lugar, foi a nós que apresentaram a conta da nossa ingenuidade e o continuam a fazer. As suas campanhas já nada nos dizem.
O povo a que pertenço não conhece os métodos para vencer e chegar longe... só conhece o trabalho diário, a hora de entrada sem atrasos, o fazer tudo com o máximo de esforço, obediência, sacrifício, o dar tudo por tudo e sempre. Os nossos números raramente passam da centena. Não sabemos avaliar milhões, nem derrapagens, nem impactos, nem negociações, nem compensações. O valor do crude... só o reconhecemos nas facturas dos bens de 1ª necessidade.
Vivemos na corda bamba dos despedimentos, das hipotecas, dos centros de saúde, dos transportes públicos. Somos os profissionais dos sonhos adiados.
Somos orfãos e filhos únicos nas preocupações com as propinas dos estudos dos filhos, nos juros da casa, na alimentação mais básica, nos medicamentos imprescindíveis, no passe do autocarro lotado e nos extras que sempre aparecem quando menos podemos.
O povo a que eu pertenço ainda suspira de alívio quando tem obrigações...

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