Alagados

Para sair de Salvador e voltar para Feira de Santana, para a praia do Sítio, onde me encontrava de férias, perdi-me.
Parar não era solução e por isso continuei.
Ainda pensei que a qualquer momento iria encontrar uma placa que me indicasse a estrada principal, mas enganei-me. Fui dar a uma zona desabitada.
A estrada terminava ali e o que eu via à minha frente era aterrador.
Milhares de barracas de madeira construídas em palafitas, amontoavam-se no lodo que a maré ao descer, deixava ver. Latas de bebidas boiavam em quantidade, que nunca imaginara se pudesse juntar. Papéis, plásticos, trastes velhos, farrapos, eu sei lá! A água era negra e pastosa. Tudo boiava no lodo, que deitava um cheiro fétido e me dificultava a respiração.
Tinha de afastar os mosquitos com as mãos, pois formavam nuvens cerradas à frente dos meus olhos. As pessoas e os andrajos, que pouco as cobriam, eram tão sujos como o lodaçal, que atravessavam por pequenas pontes de madeira podre.
As crianças quase nuas, brincavam com o lixo que cobria tudo.
Ali despejavam os detritos da casa (casa? pequenas barracas esburacadas em cima de pernas esguias enterradas na lama), que faziam as suas necessidades, que apanhavam algum objecto que a corrente trouxera e ainda podia ter utilidade.
Era um mundo surreal. Nunca imaginara nada assim. Parecia o cenário de um filme.
Parei para perguntar pelo caminho que me levaria a Feira de Santana.
Tive que repetir a pergunta por várias vezes. Primeiro, o homem que me ouvia, não me entendia. Quando falei mais devagar, com frases mais curtas e me entendeu, admirou-se de eu estar ali - "o Bairro dos Alagados não era visitado por turistas e eu, pela cor pálida, a roupa que parecia ir para uma festa e a língua esquisita, só podia ser turista!"
Por fim lá me explicou e agora quem teve dificuldade em entender fui eu.
Quando cheguei, finalmente, junto dos meus amigos, ouvi as maiores exclamações. Disseram que tinha corrido sérios riscos de não ter saído de lá com o carro ou até com a roupa que vestia.
Tinha sido uma loucura eu andar por aqueles sítios. Ali viviam os mais pobres dos pobres de Salvador.
Eu ainda tremia, apesar dos km já percorridos entretanto. Não de medo, mas de emoção.
Respondi, escondendo o meu nervosismo, que os malandros, os marginais, não viviam naquelas condições. Deviam fugir de lá, mal tivessem capacidade para chegar à cidade e fazer o primeiro roubo, ou o primeiro tráfico.
Estava cansada do calor e o cheiro nauseabundo de mil esgotos continuava no cabelo, na roupa e nas narinas. Já no duche pensei como era possível deixarmos que vivesse gente naquelas condições... e imaginei como aquelas crianças gostariam de estar assim, debaixo de água quentinha, com um gel de maçã, uma esponja macia como a seda e uma toalha enorme, morna e felpuda, à espera. Depois, a rede de algodão beje, na varanda e o sumo de maracujá gelado ao lado do livro que andava a ler...
Na hora de nascer, quem determinara que eu iria nascer aqui e eles lá?

Salvador da Baía


Quando visitei a cidade de Salvador, na Baía, revi cada linha dos livros de Jorge Amado, que li aos 16 ou 17 anos e voltei a ler algumas vezes pela vida fora.
O mar e o areal de "Baía de todos os Santos", as ruas apertadas com casas degradadas de "Velhos Marinheiros", o cheiro forte dos restaurantes e "botecos" de "Dona Flor e seus 2 maridos", as mulatas bonitas e os turcos a apregoar as mercadorias de "Gabriela", enfim... tudo parecia exposto para mostrar aos turistas o catálogo feito por Jorge Amado.
Admirei as muitas igrejas, tantas que ficamos a pensar se haveria fiéis que justificasse aquela quantidade, (2 e 3 no mesmo largo), com o traço das nossas igrejas do Minho e da Beira.
Pasmei com os bairros de gente rica, com altos muros a esconder as mansões, as câmaras de vigilância por todo o lado, os portões enormes, como se fossem quartéis de alta segurança, só mostrando o cimo das altas copas das árvores que enfeitam os jardins.
Comi os pratos deliciosos com camarão seco, caju, amendoim, óleo de dendê, leite de coco e peixe fresco, com odor tão agradável e uma cor tão forte, que não apetecia diluir com a mistura da farinha de mandioca.
Vi os praticantes de Capoeira exibirem a sua arte, que pode ser arma mortal, para ganharem uns dólares dos turistas. Eram rapazes altos, esguios, cor de chocolate, ágeis e certeiros, sem sorriso, que assustavam em cada atirar dos pés como se fossem pedras.

Comprei artesanato. Os célebres balangandans que dão sorte, o facão com que desbravam o mato e cortam a cabeça às cobras, bordados em linho e rendas de filé e de bilros.
Por fim, quis ir visitar a Igreja do Senhor do Bom Fim, tão famosa pelas fitinhas coloridas que tanta gente usa atada nos pulsos, para concretizar os pedidos feitos.
A Igreja está ao cimo de um largo e entra-se com o carro pelo lado direito e sai-se pelo esquerdo, como é normal. Logo à entrada da grande praça, estavam dezenas de garotos a vender molhos de fitas com o carimbo de "Lembrança do Senhor do Bom Fim", que atiravam pelas janelas dos carros e corriam para receber o dinheiro.Parei e perguntei o preço. Os 3 ou 4 miúdos que encostaram o nariz ao carro, não tinham sequer a altura da janela e esticavam-se para falar comigo. Um deles fez o preço. Apontou para o chão do carro, para onde eu atirara um saco de plástico transparente, com um resto de sandes e de bolo que não consguira comer, esperando encontrar um caixote do lixo para o deitar fora e pediu-mo.
Ainda lhe disse que era lixo, mas ele insistiu.
Fiquei muito perturbada. As camisolas de algodão que vestiam estavam em farrapos, os pés descalços e o sorriso enorme mostrava com entusiasmo os molhos de fitas.
A Igreja estava fechada e não pude visitá-la. Aproveitei para sair dalí rapidamente, pois o saco que o garoto levou, chamou a atenção dos outros e em dez de 4 eram já 20 ou 30 à volta do carro.
Nunca mais esqueci as caras dos garotos e percebi a poesia que Jorge Amado colocou na seu livro "Os capitães da Areia."

Olodum

Ritmo, cor e prevenção

No Brasil, em Salvador da Baía, muitas crianças deambulam pelas ruas desde os primeiros anos de vida.
Não vão à escola, não se alimentam regularmente, não têm cama, nem tecto.
Aprendem a arte de roubar, de fugir, de matar, de consumir.
Um grupo de artistas das canções, juntou-se e começou a organizar uma escola onde fizessem alguma coisa por esses garotos.
Ginástica, leitura, escrita, desenho, dança, capoeira e... música.
A música tocada em latas, pequenas e grandes, novas, amolgadas e pintadas com cores garridas.
A garotada gostou. Estudava só para ter direito a entrar no grupo da batucada.
Saíram das ruas, passaram a ter normas, a ter auto estima, a ter orgulho, a ter amigos, a ter família. Nasceu o Olodum.
Paul Simon descobriu o seu ritmo e levou-os a Nova York, a um grande concerto de Hyde Park.
Gravam discos, fazem concertos, entram em grandes espectáculos em muitos países do mundo.
E crescem, crescem em idade e em número.
São um milagre de cor, de som, de luta e de amor pelo próximo.

A magia da música

Sete notas.
Juntinhas, a brincar, travessas, desenham a melodia.
Entre uma e outra e outra, o ritmo saltita, alegre, irrequieto, irreverente.
A melodia que nos faz cantarolar, dançar, sonhar.
Que nos faz companhia, que adivinha o que sentimos, que fala por nós.
Que nos leva longe, sem sair do lugar.
Alegre, quente, suave, gritante, chorosa, melada.
Hino de revolta na boca de operário em luta pelo direito de viver.
Toque repetido na marcha de soldado, passo marcado, ensaiado, acertado por voz de comando.
Oração com refrão de esperança.
Canção de embalar em boca de amor para sono de anjo.
Lenga lenga de criança.
Música.

Perdemos a memória?

Ontem compreendi o que o Sr. Deputado disse na Assembleia da República!
Tinha-me levantado às 6.30h e mal nasceu o dia, fui arranjar o meu jardim. Estava tudo em sossego e a temperatura era até agradável. Foi então que senti algum movimento na padaria que fica quase em frente. Não liguei, como é meu costume. Apesar de ser mulher sou pouco curiosa para este tipo de coisas.
Mais tarde, já a acabar de tratar das plantas, veio a senhora da padaria fazer-me uma pergunta.
Apesar de me conhecer mal pois raramente lhe compro o pão, acabou por desabafar comigo. Contou, ainda nervosa, que a ASAE entrara na padaria , às 7h da manhã de domingo, a perguntar pelo forno e pelo armazém da farinha. Ela explicou que tinha forno, mas sem compensar cozer ali o pão, tinha deixado de o usar e em consequência disso, acabara também com a farinha.
A panificadora fornecia-lhe o pão todas as manhãs, já há alguns anos.
Perguntaram-lhe então por uma empregada que tinha. Ela explicou que não tinha empregados. "Então e a Srª tal, que é reformada por invalidez?"
Ela explicou que esteve uns dias no Hospital e essa sua amiga tinha-a ajudado, para não ter de fechar a padaria.
Tinham denúncias escritas daquelas situações.
Depois de insistirem e verificarem tudo algumas vezes, saíram com cara de poucos amigos!
Já não se lembram do que sofremos durante quase meio século? Ou lembram-se e é isso que querem de volta?

Rédea curta

Um político da oposição, na Assembleia da República, comparou a ASAE com a Pide.
Não conheço as razões que levaram a tal acusação, mas o pouco que mostram da actividade da ASAE, agrada-me.
O nojo dos restaurantes engordurados, desleixados, com as casas de banho atafulhadas de caixotes de alimentos e detergentes, os alimentos com aspecto e sabores impossiveis de determinar, montes de moscas nos vidros das janelas, tudo me deixava apreensiva há muito tempo.
No que diz respeito à alimentação, era assustador o que se via ou se sabia de vez em quando.
Aquele restaurante que foi fechado porque encontraram enterradas no quintal dezenas de pata de burro, por exemplo!
Os alimentos com o prazo caducado há cinco anos!
A carne de cão nos restaurantes chineses!
E não imaginava sequer uma parte do que veio a saber-se depois, com a actuação da ASAE.
Ainda há muito por fazer. Um destes dias fui tomar um café e uma das empregadas que estava atrás do balcão, passava com frequência a mão pelo nariz porque estava constipada. Um cliente pediu-lhe uma sandes de fiambre e ela foi buscar o pão, abriu-o e colocou o fiambre, sem lavar as mãos ou colocar as luvas que estavam na bancada para esse fim.
Por outro lado, as feiras e os mercados eram o paraíso onde se conseguia comprar tudo de marcas famosas, a preço da uva mijona.
Enquanto olhava as bancas cheias de roupas, calçado, discos e fimes, pensava na economia dos pobres comerciantes que pagavam impostos, rendas, salários, segurança social e estavam às moscas, enquanto teimavam em sobreviver à invasão de um inimigo que não conseguiam combater.
Onde eu pensava mais nisso, era em Leiria. Na baixa, perto das ruas das lojas de modas, funciona a feira todas as terças feiras e sábados.
Quem é que iria comprar uns jeans na loja, se na feira havia praticamente igual, com mais variedade e a um décimo do preço?
Embora me soubesse bem que assim fosse, não deixava de pensar no problema.
Vê-se que muita coisa mudou. Desde a cozinha do retaurante de quinta categoria onde almoço durante a semana, até à barraca das farturas que está iluminada em frente da casa da minha mãe, a diferença é notória. Os balcões de inox, dantes atafulhados de caixas, frascos e alguidares com restos de tudo um pouco, agora brilham de limpos e parecem maiores sem os trastes que faziam já parte deles. Já não se estranham as empregadas com as toucas brancas, as luvas para manusear os alimentos, a bata e o avental.
Já lá vai o tempo em que iamos lanchar à pastelaria, vinha para a mesa um prato com bolos sortidos e só pagávamos os que comíamos, enquanto os restantes continuavam a ir de mesa em mesa à mostra, até que agradassem a alguém.
Lembro-me duma história que o meu pai contava, com a graça que só ele tinha, do homem que estava a comer uma morcela e trincou qualquer coisa que não era habitual encontrar naquele enchido. Tirou-o da boca com cuidado e ficou aflito, dizendo que lhe tinha caído um dente. Mas, ao procurar a falha do dente, viu que os tinha todos!
Claro que muitos de vocês dirão que comemos muita "porcaria" feita nas fábricas... o que eu acho é que pior seria se não houvesse o medo pela fiscalização!

Os indiferentes

Comecei a trabalhar muito nova e muito nova me habituei a cumprir obrigações.
O vencimento era o estipulado por Lei. As regalias eram as determinadas para todos a mim iguais. As obrigações, essas mudavam constantemente, conforme os meus superiores queriam mostrar serviço e dar nas vistas. E como a própria palavra indica... eram obrigações.
Algumas novidades que surgiam e se lembravam de exigir, logo a seguir eram postas de parte e substituídas por outras, igualmente efémeras, imprestáveis e sem resultados práticos de qualquer valor, porque tudo era feito apenas para mostrar que o que existia não prestava.
Já eu trabalhava quando o 25 de Abril aconteceu e parecia que tudo de errado tinha sido feito até aí e tudo de certo passaria a fazer-se...
Eu nunca me entusiasmei muito com política e sempre desvalorizei os grandes títulos dos jornais que tanto assustava quem convivia comigo.
Nunca fui para a porta do supermercado a marcar vez para comprar leite e conservas, com medo de uma revolução. Nunca enchi a banheira de gasolina, nem a varanda de bilhas de gaz. Não foi por espírito de contradição, sentia mesmo que não valia a pena. Tudo me soava a trovoada de Verão.
Continuei a trabalhar todos os dias e a cumprir com todas as obrigações que os chegados de novo impunham, depois de acharem, como era costume, que as existentes estavam erradas e tinham de ser alteradas com urgência. Metade do meu esforço era compreender o que pretendiam de mim e adaptar-me a fazer o mesmo, mas de forma diferente.
Revoluções foram acontecendo sempre daí para cá.
Caíram governos e surgiram governos, fizeram leis e revogaram leis e eu sempre no meu dia a dia igual... de cumprir com o que me ordenavam.
Tenho tido mais chefes a darem-me ordens, do que colegas a desempenhar as tarefas comigo.
Todos chegavam com o saber na pasta e daí a pouco tempo outros chegariam e os obrigariam a partir, tal como eles tinham feito.
As grandes lutas nunca foram minhas, nunca senti que adiantassem alguma coisa, pois com o passar dos anos confirmei que tudo tinha um percurso muito igual, tudo era demasiado previsivel, além de que para se ter voz se tem de ter poder e o poder não se adquire a trabalhar todos os dias cumprindo obrigações. Só com poder se pode falar e sair impune.
A meio do ano passado remodelaram todo o meu serviço e deram-nos formação para pôr em prática as ideias que algumas mentes escolhidas acharam que revolucionariam a minha profissão e obrigariam aqueles que fizeram "mal feito" o seu trabalho durante dezenas de anos, o passassem a fazer bem feito.
Parece que vai tudo mudar outra vez... mal me adaptei aos nomes complicados e aos sistemas rebuscados e aí vem mudança de novo!
Acusam-me de tudo ser assim, por causa de pessoas como eu. Que deveriamos falar, em vez de comer e calar!
Eu, como todo o povo, sei pouco, trabalho muito e gasto as minhas energias a lutar por me adaptar e cumprir o que, mesmo assim, me dá direito a ter o mínimo com que pagar as contas a tempo. Sou filiada no maior partido do meu país - O partido dos indiferentes.
Foi a nós que prometeram mundos e fundos, porque nós somos os degraus para poderem chegar lá acima. Foi a nós que desiludiram em primeiro lugar, foi a nós que apresentaram a conta da nossa ingenuidade e o continuam a fazer. As suas campanhas já nada nos dizem.
O povo a que pertenço não conhece os métodos para vencer e chegar longe... só conhece o trabalho diário, a hora de entrada sem atrasos, o fazer tudo com o máximo de esforço, obediência, sacrifício, o dar tudo por tudo e sempre. Os nossos números raramente passam da centena. Não sabemos avaliar milhões, nem derrapagens, nem impactos, nem negociações, nem compensações. O valor do crude... só o reconhecemos nas facturas dos bens de 1ª necessidade.
Vivemos na corda bamba dos despedimentos, das hipotecas, dos centros de saúde, dos transportes públicos. Somos os profissionais dos sonhos adiados.
Somos orfãos e filhos únicos nas preocupações com as propinas dos estudos dos filhos, nos juros da casa, na alimentação mais básica, nos medicamentos imprescindíveis, no passe do autocarro lotado e nos extras que sempre aparecem quando menos podemos.
O povo a que eu pertenço ainda suspira de alívio quando tem obrigações...

Quando terá sido?

"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta (...)
.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta ate à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados (?) na vida intima, descambam na vida publica em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na politica portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro (...)
.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do pais, e exercido ao acaso da herança, pelo primeiro que sai dum ventre - como da roda duma lotaria. A justiça ao arbítrio da Politica, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas;
.
Dois partidos (...), sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes (...) vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se amalgamando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar (...)"
.
* Guerra Junqueiro, Pátria, 1896
.
de 1896 a 2008
(música)
(cortesia QUADRATIM.blogspot.com)

Aqui e Agora

A vida observa-se
os olhos abrem-se

os néscios governam
os valores ignoram-se
a ética despreza-se
a prepotência impõe-se

os sensatos dispensam-se
os sábios ostracizam-se
as dúvidas evitam-se
as perguntas rechassam-se

os escrúpulos afrouxam
a vergonha perde-se

os lugares distribuem-se
o mérito subestima-se
os talentos desperdiçam-se
as desculpas inventam-se
as justificações forjam-se
os compadres entendem-se
os afilhados ajeitam-se
os oportunistas seduzem-se

os salários congelam-se
as avenças engordam-se
os iníquos vangloriam-se
a mentira proclama-se

os ministros favorecem
os deputados aproveitam
os autarcas enriquecem
e todos se corrompem

o protesto silencia-se
a oposição humilha-se
a denúncia abafa-se
a indignação persegue-se
a revolta arrasa-se

os interesses calam-se
os interessados compactuam
a promiscuidade instala-se
os cinzentos calam-se
os mansos conformam-se
os fracos rendem-se
os espertos vendem-se

a propaganda especializa-se
a fachada institui-se
as premissas baralham-se
os custos sonegam-se
os resultados inventam-se
a fraude aceita-se
a prosápia acata-se
o embuste decreta-se

os neófitos apressam-se
as influências traficam-se
os direitos usurpam-se
as obrigações incumprem-se
os bens empenham-se
as dívidas crescem
o passado salda-se
o presente liquida-se
o futuro hipoteca-se

os desiludidos demitem-se
a ambição descontrola-se
a vaidade desnorteia-se

os ávidos promovem-se
os ávidos ratificam-se
os ávidos aplaudem-se
os ávidos compensam-se
e recompensam-se

os ávidos rivalizam

os esbirros traem
os cúmplices desmarcam-se
os mandaretes desmacaram-nos
as línguas desprendem-se
e a marosca revela-se

os ombros encolhem-se
os injustiçados cansam-se
os honrados indignam-se
os corajosos revoltam-se
o escândalo rebenta
a barca abandona-se
as culpas assobiam-se
e a vida continua