F. Pessoa

Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este mar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ter.

Fernando Pessoa

Primavera

Neste dia tão cinzento, em que a esperança parece ter desaparecido, anunciam no noticiário da manhã, Sol e calor para o fim de semana.
A nossa vida é assim: Tristeza e esperança, sacrifício e confiança, um dia após o outro.
O que não nos mata, fortalece-nos, dizem.
Espero bem sair fortalecida de tantos sacrifícios, porque as forças já são poucas e o futuro (segundo a ordem natural da vida) muito curto!

Morrer e renascer

Nas pequenas povoações do interior a vida parece ter desaparecido das ruas.
As lojas fecham e as poucas que resistem aos tempos de crise estão vazias de produtos e de clientes.
Os cafés encerram cedo e até as ruas, com iluminação reduzida, mostram a tristeza de um país sem esperança.
Só a terra teima em se mostrar como todas as primaveras.
Os campos floridos, as vinhas cheias de novos rebentos, as árvores de fruto todas em flor, prometendo
os frutos do Verão, os jardins das pequenas casas com as sardinheiras de várias cores, os malmequeres amarelos, brancos e rosados, os jarros com a sua corola alva e os lírios roxos nos murros de terra na beira das estradas, os narcisos amarelos que nem canários, as magnólias majestosas, as camélias rubras e rosas e as trepadeiras liláses, recusam-se a deixar de renascer por falta de saldo.

A espera e o silêncio

E o dia chegou, parou e partiu, como alguém que espreita e vira costas, indiferente.
Fora  esperado, construído em formas diversas, todas elas tão desejadas.
Quando parou, tudo em redor parou também, menos o bater do coração, insistindo, mais forte, mais inquieto, mais insubmisso.
Virou costas e nesse instante tão breve,  ainda a esperança vivia e alongava a espera de que se formara dias e dias e mais dias e mais ainda.
Quando partiu, a esperança caiu, como cai a noite e o frio, restando apenas o silêncio, de muitos silêncios, de muitas esperas, de outras partidas, de chegadas que nunca o chegaram a ser.
E de novo se vai levantando a espera, do nada sempre renascida.
A espera e o silêncio.

O sonho

Fez-se silêncio
A noite chegou
E a Lua, magoada
Escondeu-se na nuvem mais negra.
Sem sentido, qualquer palavra
Sem forma, todas as letras
Quietos os ventos,
Mudas as águas.
Nem paladar, nem tacto, nem odor
Tudo quieto
Na dor, no luto da alma
De ver morrer mais um sonho.

Roubo

Recebi hoje o vencimento.
Quase com 40 anos de serviço, só no Estado, como funcionária pública, além de tanto que trabalhei e trabalho fora, acho que mereço o que vem no meu recibo, por todas as vezes que não fiz greve, que não participei nas manifestações, que não votei, que não me informei bem sobre aqueles em que ia votar, por me calar, por me conformar, por não me revoltar.
Eu tinha obrigação, mais do que ninguém, de reconhecer os ladrões, os burlões, os falsários, os vigaristas, os amigos do alheio, os que invejam a posição dos outros, mas não metem os pés a caminho para trabalhar duramente e o conseguirem.
Assumo a parte da culpa que me cabe e aceito o vencimento que me quiseram dar, porque tenho palavra e não quero deixar de cumprir com os meus compromissos.
É a diferença entre o que eu sou e o que eles são.

Pouco tempo

Da realidade construí um sonho
Desse sonho fiz uma espera
Nessa espera vivi a minha vida.
O que eu acarinhei em segredo
tomou forma e tocou-me
Seus braços cercaram os meus dias.
(Que pena serem já tão poucos
para viver um sonho tão grande!)

Esperar

Entre um  e outro solavanco, fui sempre acarinhando uma lembrança da  juventude.
Os mais pequenos pormenores dessa  página da minha vida resistiram a dias bons, a dias de  temporal, a momentos de desespero e períodos de mudança, inalterados, como se tivessem sido gravados na pele.
Anos passaram e se a lembrança se mantinha na mesma dimensão, a saudade e a vontade de reviver aquele episódio aumentavam de uma forma que me provocavam cada vez maior sofrimento.
Sentia que o meu tempo era escasso e teria de fazer alguma coisa antes que ele se esgotasse.
Todas as tentativas foram inúteis.
Um dia, num sábado à noite, entretida na rotina que me ajuda a manter indiferente a tudo o que me magoa, essa lembrança tomou forma e concretizou-se perante o meu olhar espantado e incrédulo.
Eu não conseguira encontrar, mas fora encontrada. E se na juventude ficou aquela cicatriz, agora, ela própria se descolava da pele, tomava forma e deixava-me o coração em sobressalto.Como a tatuagem duma borboleta que toma corpo e voa.
Com toda uma vida pelo meio, aquele sentimento renascia e mostrava que continuava vivo, apesar da longa espera.
Parece que sempre soube que esperar era a única forma de poder voltar a viver.

Fechei meus sonhos

Construí um castelo no alto da serra, no ponto mais alto, onde só o céu o olha de cima. E é tão forte o castelo, que o vento se enfurece de cada vez que o tenta derrubar. Fechei nele os meus sonhos e escondi a chave numa gruta do mar. Então quis mostrar-te o tanto que sonhei, como eram belos os meus sonhos, eternos que serão os meus sonhos. As ondas encheram a gruta de espuma rendada e levou a chave para o fundo mais profundo do mar. E agora, poderás adivinhá-los se eu te contar? Como poderei resgatá-los, para os realizar?

Culpada

Culpada. Sou culpada por ter trabalhado sempre no meu país. Sou culpada por ter trabalhado para o Estado. Sou culpada por ter suportado tudo e não ter emigrado enquanto era jovem. Sou culpada por ter envelhecido e ter de deixar de trabalhar. Sou culpada por ter acreditado que todos os descontos que fiz durante 40 anos de trabalho, me davam o direito a uma velhice sossegada. Sou culpada por não me ter revoltado enquanto podia lutar.

Como?

Como é que se diz a uma pessoa que não envelheça? Como é que se diz a uma pessoa que não adoeça? Como é que se diz a uma criança que não tenha fome? Como é que se diz a quem já não dá lucro, que tem de morrer? Como é que se diz a um ser humano que se habitue à injustiça?

Perdi o sono

Quando eu esperava que toda esta miséria começasse a abrandar, as notícias acabaram com as minhas esperanças. Trabalhamos pouco, ganhamos muito, contribuímos pouco, usufruímos muito...Temos que aprender a viver com menos, menos, menos e ainda menos. (Com menos submarinos, com menos carros de combate a apodrecer nos armazéns, com menos banquetes em Belém, com menos passagens de ano no Copacabana Palace, com menos carros topo de gama, com menos Fundações, com menos fausto nos "dia da unidade" nos quartéis, com menos mordomias nas Câmaras, com menos clubes de futebol, menos jogadores de futebol com ordenados milionários, com menos comitivas e ajudas de custo para tudo e mais alguma coisa.) Temos de fechar escolas, fechar hospitais, deixar de cuidar dos idosos, dos portadores de deficiência, dos doentes. (E se começássemos a exterminar os que dão despesa?Assim a poupança era garantida) Temos de abrir bancos, mais bancos e apoiar banqueiros, mais banqueiros, pois têm pouco lucro, pouco patrimônio, reformas miseráveis. Perdi o sono e não me apetece estar acordada.

Velhice

Detestarei ser convidada a participar nos almoços de confraternização de idosos, em que servem pratos cheios de comida toda misturada, encavalitadas as couves na posta de bacalhau e estes nas batatas aos montes, garrafas de refrigerante de litro e meio como pilares berrantes de corantes no centro da mesa e travessas de arroz doce enfeitado com corações de canela. Almocinhos que terminam com canções de letras brejeiras, em altos gritos, bailarico de velhotas a dançar umas com as outras, com rodas e filas em que os mais novos vão buscar os idosos, falando-lhes como se fala a crianças, sorrindo da sua própria boa vontade em alegrar os tristes, em que mandam bater palminhas e dão risadas sem justificação, querendo alegrar à força o convívio sem alegria, de desconhecidos, que apenas se identificam pela idade, pelos muitos anos que já viveram. Deixem-me ficar no meu canto, no meio das minhas coisas, a ouvir baixinho a minha música, a ler sossegada os meus livros, a comer a torrada habitual e a beber o chá mesmo que já morno, às voltas com as minhas lembranças incompletas, com os meus sonhos e os meus medos, mesmo que isso pareça solitário, ou solidão, ou abandono, ou mania, ou teimosia. Detestarei ser velha, mas muito mais ser tratada como coitadinha e tontinha.

Desisto

Julgava que pouco mais havia para saber das trafulhices que nos levaram a a esta situação de penúria, mas enganei-me. São umas atrás das outras e umas atrás das outras as medidas que nos fazem pagar essas trafulhices. Hoje atingi a saturação. Não quero ver notícias, nem saber de medidas, sejam elas quais forem. Ando triste, preocupada e revoltada. A partir de hoje recuso-me a saber do que se passa nesta terra de mentirosos, incompetentes e oportunistas, já que não adianta de nada. Ler, só romances. Ouvir, só música. Falar, só da Natureza, de Poesia, de Arte. Que se enforquem em contas no estrangeiro, que sufoquem com tantas mordomias, que rebentem de prazer com tantas vigarices. Não queria deixar de torcer pelo meu país, mas é carga demasiado pesada para quem já suportou tanta crise. Fui alimentando a esperança, fui esperando, esperando. Estou cansada.

2013

FELIZ ANO NOVO Que tenhamos força e paciência para enfrentar o que aí vem. Que tenhamos saúde e saibamos rir, sorrir e sonhar. Que os amigos e a família nos façam companhia e que os desconhecidos se apresentem e deixem de o ser. Que saibamos apreciar uma noite de luar, o nascer e o pôr do Sol. Que nos deem flores, sorrisos e abraços. Que nos ajudem, nos estimem e nos amem, se o merecermos. Que as lágrimas sejam de alegria. Como é pedir muito, que tenhamos tudo isto dia sim, dia não. Que o dia "não", seja em silêncio, em paz, a ler, a ver um filme ou a escrever a alguém que estimamos. Nada de notícias, discursos ou explicações de políticos. Se temos que viver com privações, que sejamos privados também das suas gincanas para nos ludibriarem e ainda lhes agradecermos. Bom 2013 para nós todos.