O sonho

Fez-se silêncio
A noite chegou
E a Lua, magoada
Escondeu-se na nuvem mais negra.
Sem sentido, qualquer palavra
Sem forma, todas as letras
Quietos os ventos,
Mudas as águas.
Nem paladar, nem tacto, nem odor
Tudo quieto
Na dor, no luto da alma
De ver morrer mais um sonho.

Roubo

Recebi hoje o vencimento.
Quase com 40 anos de serviço, só no Estado, como funcionária pública, além de tanto que trabalhei e trabalho fora, acho que mereço o que vem no meu recibo, por todas as vezes que não fiz greve, que não participei nas manifestações, que não votei, que não me informei bem sobre aqueles em que ia votar, por me calar, por me conformar, por não me revoltar.
Eu tinha obrigação, mais do que ninguém, de reconhecer os ladrões, os burlões, os falsários, os vigaristas, os amigos do alheio, os que invejam a posição dos outros, mas não metem os pés a caminho para trabalhar duramente e o conseguirem.
Assumo a parte da culpa que me cabe e aceito o vencimento que me quiseram dar, porque tenho palavra e não quero deixar de cumprir com os meus compromissos.
É a diferença entre o que eu sou e o que eles são.

Pouco tempo

Da realidade construí um sonho
Desse sonho fiz uma espera
Nessa espera vivi a minha vida.
O que eu acarinhei em segredo
tomou forma e tocou-me
Seus braços cercaram os meus dias.
(Que pena serem já tão poucos
para viver um sonho tão grande!)

Esperar

Entre um  e outro solavanco, fui sempre acarinhando uma lembrança da  juventude.
Os mais pequenos pormenores dessa  página da minha vida resistiram a dias bons, a dias de  temporal, a momentos de desespero e períodos de mudança, inalterados, como se tivessem sido gravados na pele.
Anos passaram e se a lembrança se mantinha na mesma dimensão, a saudade e a vontade de reviver aquele episódio aumentavam de uma forma que me provocavam cada vez maior sofrimento.
Sentia que o meu tempo era escasso e teria de fazer alguma coisa antes que ele se esgotasse.
Todas as tentativas foram inúteis.
Um dia, num sábado à noite, entretida na rotina que me ajuda a manter indiferente a tudo o que me magoa, essa lembrança tomou forma e concretizou-se perante o meu olhar espantado e incrédulo.
Eu não conseguira encontrar, mas fora encontrada. E se na juventude ficou aquela cicatriz, agora, ela própria se descolava da pele, tomava forma e deixava-me o coração em sobressalto.Como a tatuagem duma borboleta que toma corpo e voa.
Com toda uma vida pelo meio, aquele sentimento renascia e mostrava que continuava vivo, apesar da longa espera.
Parece que sempre soube que esperar era a única forma de poder voltar a viver.