Pior a emenda, que o soneto!

Recebi um comentário ao post sobre Salvador, Brasil, que transcrevo mais à frente.
Emenda a forma como escrevi Baía. Penso que "aportuguesei " o nome daquele Estado.
Na verdade, sinto que a pouco e pouco, a língua mãe passará cada vez mais a ser emendada.
Talvez culpa das telenovelas, que nos põem a repetir palavras que nos soam bem, a que achamos graça.
Talvez da quantidade de pessoas com sotaque, que nos atendem em todo o género de casa comercial.
Talvez do valor que damos a tudo o que é de fora e do pouco que estimamos o que é nosso.
De quem é a culpa, não sei. Sei que em vez de se adaptar quem chega (como nos adaptámos quando emigrámos e passámos a dizer "fenêtres", "maison", "donc", no meio das frases em português, sem quase darmos por isso!) nos adaptamos em nossa própria casa.
Toda a vida ouvi dizer "bicha"... Agora temos de dizer "fila".
Era norma atender o telefone com um "está?"... Agora ouço constantemente um "alô?".
Sempre ouvi pedir um "sumo"... Agora ouço pedir um "suco".
E palavras como "presepada", "rodísio", "fazer as unhas", "não estou nem aí", "oi gente!", "carona", "legal", "turma", "cafona", etc., começam a entrar no dia a dia da nossa linguagem, para a alegrar, dizem uns, para lhe dar um falso ar de modernidade (diria de cultura televisiva e de bar nocturno), dizem outros, mas sempre como colagem de quem adopta qualquer coisa, menosprezando o que é seu.
Eu escrevo Baía, como escrevo Nova Iorque, Amesterdão, Bruxelas, Moscovo, etc.
Aceito e agradeço a chamada de atenção, mas aproveito para recomendar (já agora!) a revisão da gramática portuguesa, a gramática da língua que se fala no Brasil, uma vez que as regras devem ser respeitadas.
Passo a transcrever:
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"Anónimo deixou um novo comentário na sua mensagem "Salvador da Baía":
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Sou bahiana, de perto de salvador e gostaria de lhe dizer que se escreve BAHIA, e não BAÍA, que é um tipo de formação geografica..o nome do estado deriva disto mas é BAHIA"
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Eu diria à moda da minha terra: Pior a emenda, que o soneto!

Talento?

A Francisca tem uma familiaridade com a câmara fotográfica, que nos faz sorrir e nos deixa pensativos, ao mesmo tempo.
Mal viu a mãe fazer uns testes com a nova máquina fotográfica, que me ofereceu no dia do meu aniversário, deixou a brincadeira em que se entretinha e a sua criatividade entrou em acção.
Com uma mola da roupa prendeu o vestido atrás, na cintura, para que ficasse justo.
Com a tátá (fralda de pano macio que o irmão pôe na cara quando quer adormecer), fez parecer que já tem mamocas.
Calçou os meus sapatos e desencantou na garagem um velho saco de Verão, com que completou o modelo.
Soltou os cabelos e passou a fazer poses fotográficas.
Ninguém lhe diz o que há-de fazer.
Ela brinca, sem nunca perder de vista a personagem que imagina. Ou é a mãe das suas bonecas, ou a médica a auscultar os seus doentes, ou dona de casa que conversa com a vizinha...
Dizem que tudo se aprende e que é o trabalho e o estudo que fazem com que se seja escritor, pintor, actor ou outra coisa qualquer.
Porque é que eu fico aflita se viram a câmara para mim e ela, pelo contrário, se sente logo motivada para criar?
Até quando nos pede qualquer coisa, quando nos conta um episódio, ou choraminga por alguma contrariedade, toda ela é expressão, gesto, representação.
Imita as vozes que ouve, com a maior facilidade.
Nada a intimida, parecendo que quanto mais pessoas olham para ela, mais se inspira.
Muito observadora, retira o essencial das situações, para as reproduzir a seguir, de uma forma que nos deixa espantados.
Será isto o talento?

Poema em linha recta

"Nunca conheci ninguém que tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
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Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe-todos eles príncipes-na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse, não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?"


Fernando Pessoa