Fechei meus sonhos

Construí um castelo no alto da serra, no ponto mais alto, onde só o céu o olha de cima. E é tão forte o castelo, que o vento se enfurece de cada vez que o tenta derrubar. Fechei nele os meus sonhos e escondi a chave numa gruta do mar. Então quis mostrar-te o tanto que sonhei, como eram belos os meus sonhos, eternos que serão os meus sonhos. As ondas encheram a gruta de espuma rendada e levou a chave para o fundo mais profundo do mar. E agora, poderás adivinhá-los se eu te contar? Como poderei resgatá-los, para os realizar?

Culpada

Culpada. Sou culpada por ter trabalhado sempre no meu país. Sou culpada por ter trabalhado para o Estado. Sou culpada por ter suportado tudo e não ter emigrado enquanto era jovem. Sou culpada por ter envelhecido e ter de deixar de trabalhar. Sou culpada por ter acreditado que todos os descontos que fiz durante 40 anos de trabalho, me davam o direito a uma velhice sossegada. Sou culpada por não me ter revoltado enquanto podia lutar.

Como?

Como é que se diz a uma pessoa que não envelheça? Como é que se diz a uma pessoa que não adoeça? Como é que se diz a uma criança que não tenha fome? Como é que se diz a quem já não dá lucro, que tem de morrer? Como é que se diz a um ser humano que se habitue à injustiça?

Perdi o sono

Quando eu esperava que toda esta miséria começasse a abrandar, as notícias acabaram com as minhas esperanças. Trabalhamos pouco, ganhamos muito, contribuímos pouco, usufruímos muito...Temos que aprender a viver com menos, menos, menos e ainda menos. (Com menos submarinos, com menos carros de combate a apodrecer nos armazéns, com menos banquetes em Belém, com menos passagens de ano no Copacabana Palace, com menos carros topo de gama, com menos Fundações, com menos fausto nos "dia da unidade" nos quartéis, com menos mordomias nas Câmaras, com menos clubes de futebol, menos jogadores de futebol com ordenados milionários, com menos comitivas e ajudas de custo para tudo e mais alguma coisa.) Temos de fechar escolas, fechar hospitais, deixar de cuidar dos idosos, dos portadores de deficiência, dos doentes. (E se começássemos a exterminar os que dão despesa?Assim a poupança era garantida) Temos de abrir bancos, mais bancos e apoiar banqueiros, mais banqueiros, pois têm pouco lucro, pouco patrimônio, reformas miseráveis. Perdi o sono e não me apetece estar acordada.

Velhice

Detestarei ser convidada a participar nos almoços de confraternização de idosos, em que servem pratos cheios de comida toda misturada, encavalitadas as couves na posta de bacalhau e estes nas batatas aos montes, garrafas de refrigerante de litro e meio como pilares berrantes de corantes no centro da mesa e travessas de arroz doce enfeitado com corações de canela. Almocinhos que terminam com canções de letras brejeiras, em altos gritos, bailarico de velhotas a dançar umas com as outras, com rodas e filas em que os mais novos vão buscar os idosos, falando-lhes como se fala a crianças, sorrindo da sua própria boa vontade em alegrar os tristes, em que mandam bater palminhas e dão risadas sem justificação, querendo alegrar à força o convívio sem alegria, de desconhecidos, que apenas se identificam pela idade, pelos muitos anos que já viveram. Deixem-me ficar no meu canto, no meio das minhas coisas, a ouvir baixinho a minha música, a ler sossegada os meus livros, a comer a torrada habitual e a beber o chá mesmo que já morno, às voltas com as minhas lembranças incompletas, com os meus sonhos e os meus medos, mesmo que isso pareça solitário, ou solidão, ou abandono, ou mania, ou teimosia. Detestarei ser velha, mas muito mais ser tratada como coitadinha e tontinha.

Desisto

Julgava que pouco mais havia para saber das trafulhices que nos levaram a a esta situação de penúria, mas enganei-me. São umas atrás das outras e umas atrás das outras as medidas que nos fazem pagar essas trafulhices. Hoje atingi a saturação. Não quero ver notícias, nem saber de medidas, sejam elas quais forem. Ando triste, preocupada e revoltada. A partir de hoje recuso-me a saber do que se passa nesta terra de mentirosos, incompetentes e oportunistas, já que não adianta de nada. Ler, só romances. Ouvir, só música. Falar, só da Natureza, de Poesia, de Arte. Que se enforquem em contas no estrangeiro, que sufoquem com tantas mordomias, que rebentem de prazer com tantas vigarices. Não queria deixar de torcer pelo meu país, mas é carga demasiado pesada para quem já suportou tanta crise. Fui alimentando a esperança, fui esperando, esperando. Estou cansada.

2013

FELIZ ANO NOVO Que tenhamos força e paciência para enfrentar o que aí vem. Que tenhamos saúde e saibamos rir, sorrir e sonhar. Que os amigos e a família nos façam companhia e que os desconhecidos se apresentem e deixem de o ser. Que saibamos apreciar uma noite de luar, o nascer e o pôr do Sol. Que nos deem flores, sorrisos e abraços. Que nos ajudem, nos estimem e nos amem, se o merecermos. Que as lágrimas sejam de alegria. Como é pedir muito, que tenhamos tudo isto dia sim, dia não. Que o dia "não", seja em silêncio, em paz, a ler, a ver um filme ou a escrever a alguém que estimamos. Nada de notícias, discursos ou explicações de políticos. Se temos que viver com privações, que sejamos privados também das suas gincanas para nos ludibriarem e ainda lhes agradecermos. Bom 2013 para nós todos.