Coração de cereja


Usas as palavras, para te promoveres.
Na primeira pessoa, sempre na primeira pessoa do singular, contas as casas, os carros, as motos, os negócios, as empregadas, as viagens... Aproveitas os anseios dos outros, para te valorizares, para te sentires importante. Rejubilas com a subserviência de quem sonha e vê em ti um modelo, uma heroína. Escondes, atrás da casa no Algarve, do apartamento na cidade e dos negócios que nem são teus, mas de alguém que tu serves, o luto em que vive a tua alma.

Esqueces de dizer que por causa dos cargos, quase não vês quem amas.

Não queres mostrar como as casas são a prisão dos teus sonhos, que vão morrendo todos os dias.
Mascaras a tristeza em que vives, ao seres esquecida, ignorada, deixada para trás.
Falas no espectáculo que foste ver... não da solidão que sentiste! Gabas os passeios que podes dar... não a ausência que te magoa! E em todas as contas que fazes (sim, que eu chamo a isso fazer contas à vida - não tenho isto, mas tenho aquilo!!!) o teu saldo continua negativo. Quem te admira, não é a ti, mas ao que tu dizes ter. Quem te dá razão, não é porque a tenhas, mas porque sente que quem tem tanto, também a terá... Mostras a tua carteira, para que não vejam o teu coração.

E pior... Nem tu sabes se possuis mesmo tudo o que contabilizas, pois já tantas vezes os multiplicaste para tentares encontrar uma compensação, que nem queres saber já, se enganas só os outros, ou a ti também. É embasbacados, que os que nada têm, seguem as parcelas da tua contabilidade e vão cheios de esperança jogar na lotaria, convencidos que a tua sorte os contagiou. E não vêem que levaram apenas o teu luto, a tua má sorte, a tua tristeza camuflada de ilusão.
Legenda ao desenho: "Porque és tan dura la dulzura del corázon de la cereza?" Pablo Neruda

1 comentário:

Anónimo disse...

Protesto

Por que estamos há duas semanas privados dos seus óptimos textos?

ana