Humanidade robot

Quantas crianças das nossas cidades já viram uma galinha viva?
Quantas já viram como se semeia, rega e arranca uma cenoura da terra, ou um ninho de passarinho com filhotes de olhos pretos e bicos escancarados?
E o nascer do Sol ou o seu adormecer alaranjado atrás dos contornos do horizonte?
Pensam que os frangos nascem e crescem sem cabeça, sem roupa e manetas, tal como os podem ver no supermercado, único local onde contactam com alguns elementos da natureza.
Para os nossos filhos mais novinhos o porco é bifana, costeleta ou chouriço.
Nos desenhos animados conhecem os porquinhos, mas estes falam, vestem e brincam como eles, diferindo apenas nos narizes mais redondos que o habitual e as orelhinhas cor de rosa.
As alfaces, as bringelas, as cenouras e as batatas são feitas pelos homens nas fábricas, tal como eles moldam a plasticina no jardim escola.
O sumo de ananás vem do supermercado, assim como o de morango e o de pêssego.
Até a água boa para beber de lá vem, em garrafas e garrafões, já que a que sai da torneira, dizem-lhes que não serve para beber e a que provam no mar é salgada e cheia de lixo.
A chuva vem do céu e é uma seca, porque impede que brinquem no pátio. Às vezes é gira, porque faz lama e charcos onde podem meter os ténis de marca, à saída do colégio, quando vão a correr para o carro, arrastados pelos pais. A utilidade da água, além de ser para beber, talvez arrisquem a dizer que é para lavar os carros, encher as piscinas e regar a relva do jardim da vivenda.
Embora digamos constantemente que as nossas crianças sabem tudo de computadores, de canais da TV Cabo e de telemóveis, dá tristeza ver como crescem longe da natureza.
Nunca viram um riacho, a correr límpido entre os seixos do seu leito e nas suas margens, a pequena vegetação a mergulhar a folhagem na água de cristal.
Nunca ouviram o arrolhar dos pombos no telhado do palheiro, nem o galaró cantar ao amanhecer. Não dormiram à sombra duma árvore, em tarde de calor, nas traseiras da casa, respirando o oxigénio com que ela generosamente os presenteia, sem cobrar qualquer taxa.
E à noite, em vez de luzes coloridas de publicidade animada, nunca ficaram na varanda a olhar o céu estrelado, medindo apenas a imensidão do universo e o silêncio - o silêncio tão ausente dos seus dias.
As fontes estão poluídas, os rios cheiram mal, não podem andar descalços por causa dos vidros, das latas e dos arames.
Até olhar o firmamento, já não é possível sem tomar os satélites, por estrelas.
E se os olhos não sentem a ausência das cores da natureza, por terem as tintas que as imitam, se os ouvidos se habituaram aos sons das baterias, violas eléctricas e estereofonias, em vez do canto dos pássaros e das canções trauteadas pela mãe nos seus trabalhos domésticos, o olfato perde o cheiro da terra molhada pela chuva na tarde de Verão e o paladar nem adivinha o que é uma cereja colhida da árvore, estalar entre os dentes e suculenta, deixar escorrer o sumo que nos tinge a camisola da cor do sangue.
O pôr do Sol é tão habitual, que nunca pararam para o ver e só dariam conta que o Sol nasce, se um dia ele não nascesse.
E assim o progresso vai roubando, aos poucos, a humanidade das gerações que chegam.

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