Matracas

Na Páscoa, na procissão que simboliza o enterro de Jesus, vão as pessoas em silêncio, nas ruas às escuras, só se ouvindo as matracas... placas de madeira com ferros dependurados e que fazem um barulho seco, conforme são sacudidas.
Foi assim que eu me senti hoje, todo o dia. Uma dezena de matracas foi chocalhada insistentemente no gabinete ao lado do meu, entrando-me o matraquear pelos ouvidos, enchendo-me a cabeça, arrepiando-me os cabelos, eriçando-me os pêlos como pele de galinha.
Todo o santo dia sofri horrores com aquelas castanholas incansáveis que trauteavam mil assuntos ao mesmo tempo e me faziam zumbidos nos ouvidos, suores nas mãos, tremores nos joelhos.
Secou-se-me a boca, tive tremeliques nos olhos, ameacei ranger os dentes e bufei mil vezes, tantas quantas comecei a mesma frase no computador e a interrompi por falta de coragem para avançar naquele alarido, batuque, sapateado e toques de unhas nos vidros.
Se me atrevia a desviar a atenção para o meu trabalho e me demorava a mostrar a minha concordância (sem saber qual era o assunto, efectivamente) tudo era dito do princípio com mais convicção e frenesim.
A minha cabeça era um coco cheio de pedras miúdas que batiam e ecoavam no fundo, deixando-me com náuseas e tonturas.
Desisti de esperar que se cansasse, pois quanto mais falava, mais energia tinha, mais alto era o seu tom de voz. Os gestos eram cada vez mais largos, mais rápidos, mais ameaçadores e fantasmagóricos. Tive medo que partisse o vidro que nos separava, que rebentasse as veias do pescoço, que lhe saltassem os olhos das órbitas, que sangrasse dos nós dos dedos... de tantas pancadas que davam nos móveis! Se eu desviava o olhar, os sons agudos transformavam-se em silvos, que pareciam sirenes... Era a guerra de 14/18, a bomba atómica, o fim do mundo!
Meu Deus! Venho esgotada de tanto ouvir. De certeza que vai dormir bem esta noite, quem tanto falou! Apesar de já estar fechada na minha casa, a salvo, continuo a ouvir a matraca, no som seco e repetido que me levanta os cabelos e me enche de tiques nervosos!!!

6 comentários:

Anónimo disse...

espectacular... um talento perdido... não o dela mas o teu na escrita. Força, rapariga escreve um livro. Simplesmente espectacular. Filo

Li disse...

Também não posso com essas matracas...cuscas, calhandreiras, metediças, sempre a falar na vida dos outros...tudo o que lhes quiserem chamar...grrrr...ainda hoje tive de aturar uma no trabalho...livra...

E concordo com o comentário anterior...tens um dom natural para a escrita...escreve um livro que eu compro...:)

nuno medon disse...

Calculo o que passaste ontem! Tu a precisares de sossego, e as outras pessoas a gritarem alto. Mais valia teres ficado em casa e trabalhar lá... beijos e um bom fim de semana, apesar da chuva!

nuno medon disse...

Tu dás uma boa escritora! Ainda estás a tempo de editar um livro!

Frioleiras disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
nuno medon disse...

Continuação de um Bom Domingo para ti! ******