O meu melhor amigo

Quando procuro na minha memória os primeiros momentos que passei com ele, encontro pequenos episódios em que raramente participo, mas fazem parte da nossa vida.
Essas lembranças mostram claramente a semente a germinar de um homem inteligente, brilhante e bom. O melhor ser humano da Terra.
Recordo o 1º dia que foi ao colégio, com 3 anos. Morava no Largo José Barata, nº10, muito perto do colégio das freiras. Era só virar a esquina. O Luís, seu amiguinho, também começava a vida de "estudos" e combinaram ir juntos.
A mãe tinha bordado no seu bibe um coelhinho a andar de lambreta e ele, muito vaidoso, de cabelo molhado e acabado de pentear, como a Amélia gostava de fazer, atravessou a rua com passo apressado, a caminho do colégio, pequenino, gordinho e muito, muito bonito.

Nesse Natal, a prenda que pediu ao Menino Jesus foi a cartilha, para aprender a ler.
Sabia o catecismo só de ouvir as lições dos mais velhos e teimou fazer a 1ª Comunhão. O Sr. Padre Bento não autorizava, por ele ter só 4 anos. Como não se calava, a Irmã Prudência intercedeu junto do Sr. Padre, que acabou por concordar em lhe fazer exame.
Provou que sabia o catecismo de cor e salteado e no dia do Corpo de Deus, de fatinho branco, concentradíssimo, fez a 1ª Comunhão.

Mas não era nenhum "papa-açorda"! Um dia, sempre na companhia do amigo Luís, foi brincar para o parque das tílias.
No Fundão o mês de Agosto é muito quente e toda a gente sai à noite para apanhar ar fresco. Um dos lugares mais agradáveis é o Parque das Tílias, onde as crianças aproveitam para brincar. Ele e o amigo lembraram-se de correr à volta do pequeno lago e não foi preciso esperar muito tempo para caírem lá dentro. A mim calhou-me ir a casa buscar roupa seca!

Sabia os nomes de todos os elementos dos clubes de futebol, nacionais e estrangeiros. O pai delirava ouvi-lo dizer os nomes complicados dos jogadores russos, alemães, italianos, eu sei lá…
Falava das fintas, dos cantos, dos fora de jogo e dos penaltis como verdadeiro especialista. Era Belenenses, como o pai.
Nos dias de futebol na TV em que jogava a selecção (não sei se foi por esta altura que Portugal foi campeão europeu) a casa vinha abaixo com o entusiasmo deles.

Já sabia ler, escrever e contar... não queria continuar no colégio.
"Outro ano a brincar? Outro ano a ouvir as mesmas cantilenas de aeiou e de 123?" Não se calava… “O colégio é para os pequeninos”, queixava-se (começava a deixar de ser gordinho e esticava...) Queria ir para a escola.
O pai falou no assunto com o professor Pacheco, de quem era amigo, e riram das espertezas do miúdo. O professor ia leccionar a 1ª classe e achou que podia deixá-lo estar na sala, mesmo sem se matricular, pois só tinha 5 anos. E lá foi, todo lampeiro e sorridente.
No ano seguinte foi o bom e o bonito. Tinha de ser matriculado e por conseguinte, frequentar de novo a 1ª classe. "Então tinha chumbado? Repetir o ano porquê?" O pai soava as suas gargalhadas habituais e não lhe dava importância, mas ele não se conformava, não achava graça à brincadeira. Como sempre, venceu.
Nós fazíamos a 4ª classe em simultâneo com a admissão ao liceu. Quando chegou a sua vez, ainda estava matriculado na 3ª classe. O pai já sabia que não o ia calar e tentou contornar o problema. Fez a 4ª classe na escola e no ano seguinte, em vez de repetir, foi para o Externato fazer a admissão. Andou sempre um ano adiantado. Era decidido, mas sempre meigo e sorridente.
De joelhos no chão e o papel em cima da cama, passávamos horas juntos, eu a desenhar os carrinhos miniatura que ele tinha, ou cenas de cowboys, e ele a assistir maravilhado. Era desenho à vista, com lápis de carvão, com que eu fazia simples efeitos de sombra e luz.
Já então me inspirava e incentivava...
Um dia fomos jantar a casa da D. Etelvina, uma senhora amiga. Havia um piano no enorme corredor da casa. Ele descobriu-o e pediu para ver como era. Daí a pouco começamos a ouvir o som das notas que ele experimentava. Em menos de um minuto já soava na casa a música “As pombinhas da Catarina”.
A música fazia parte dele, nasceu com ele. Sabia todas as canções que estavam em voga. Todo o dia cantava.
A mãe, cansada de o ouvir batucar em tudo o que era lata ou madeira, mandava-o para os quartos mais distantes da sala, onde repetia o reportório das 6 da manhã, até cair de maduro. Aos 14 anos formou um conjunto, nome que se dava então às "bandas". Como não tinha idade para actuar em recintos em que os espectáculos se prolongassem além da meia-noite, pediu uma autorização especial e teve o pai de responsabilizar-se por ele.
Era o baterista do "Psycadelic Set", nome do grupo que ajudei a escolher.
Era o tempo de "If you go to S. Francisco", "Love me tender", "The times they are a-changin", "Love, love me do", dos singles e dos LP de vinil, dos primeiros gritos de fans que desmaiavam a ver os Beatles, das flores no cabelo, do "make love, not war"e do LSD.
Fui emancipada para poder ter a carta de condução e como o meu pai me emprestava o carro, passei a ser o motorista do grupo, transportando os rapazes quando iam actuar nas festas das redondezas. Não fazia grande sacrifício, como se deduz. Tudo aquilo era pura emoção para mim.

Mas ele ainda não sabia dançar. Então, quando os 14 anos já pediam para dançar agarradinho às miúdas, nas vésperas dum Baile dos Finalistas, eu ensinei-lhe o “dois para a frente e um para trás”, ao som da música que a Emissora Nacional oferecia nas tardes de sábado. Deu para o gasto nesse dia. Depois, sem a minha ajuda, tornou-se num grande dançarino.
Os livros de estudo serviam para alguns anos e os meus, talvez por ser pouco estudiosa ou já então bastante cuidadosa, passavam para ele quase novos. Em pouco tempo ficavam sem capas, folhas soltas e dobradas, com desenhos de baterias e violas em todas as folhas, mesmo em cima das lições.
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Riamos muito. Por tudo e por nada. Quando estávamos juntos, qualquer coisa servia para rirmos. Ainda hoje temos esse hábito.

Fui a sua madrinha nos lobitos (escuteiros).
Nasceu a minha filha e foi ele o padrinho. Quem melhor poderia eu escolher para cuidar dela?
A Rita tem verdadeira paixão pelo Tonô e considera-o como um pai.
Casou e eu fui a sua madrinha.
Laços supérfluos comparados com o sentimento verdadeiro que nos une.
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A vida ganha tendo-o como músico, escritor e poeta.
Ele ganha a vida como advogado.

É realmente um ser humano muito especial.
Tem um coração enorme, doce, sensível e generoso. Tem muito sentido de humor e é uma companhia muito divertida.
Mas o tempo não pára e a vida deu-nos rumos diferentes.
Ele é importante, respeitado e muito querido pelos seus e por muitos, muitos amigos.
Em todos os momentos, no entanto, mesmo a km de distância, eu sinto que posso contar com ele, que ele está sempre lá.
Há algum tempo, alguém defendia as vantagens dos filhos únicos e uma amiga minha, a Vandinha, disse que nem imaginava a vida sem o irmão. Eu fiquei a pensar nisso e compreendi o que ela sentia. Que tristeza, se não tivesse o meu irmão. A minha solidão seria bem mais pesada. É ele que me incentiva, me ajuda, me defende, me ensina, me compreende. Tanto que eu perdia!O
...Obrigada, paizinho.
Tivemos sempre sonhos idênticos.
Desde criança sonho muitas vezes que estou sentada a um piano e toco sem dificuldade as músicas que mais gosto. Casei cedo, tive os meus filhos e tenho trabalhado muito para não depender de ninguém. Talvez tudo isso não passe de uma forma de justificar a minha preguiça , mas nunca arranjei tempo para ir estudar música.
Ver o meu irmão sentado ao piano e ouvi-lo tocar tão bem, foi maravilhoso! O meu coração encheu-se de música e de... orgulho.
No liceu fiz aptidão a Direito, mas depois entrei para História, fui trabalhar, casei e não continuei. Adoro escrever, mas ver os seus poemas, as suas crónicas, os seus contos, mostra-me que também aí, ele vai bem à frente.
Eu sonho e ele vive.
Pois é! Que seria a minha vida sem o meu irmão, sem o meu melhor, maior e verdadeiro amigo?
Em tempos, tive o meu pai, que ao partir, providenciou que eu não ficasse desamparada e me deixou este irmão. Obrigada, paizinho..
Está prestes a passar mais um aniversário do seu nascimento. Foi abençoado na hora em que nasceu, mas mais do que ele, fomos nós abençoados com a sua presença na nossa vida.
Deus estava inspirado quando pegou no barro com que o modelou. Estava inspirado e foi muito generoso.

. Parabéns Tonô e que o dia 14 de Junho se repita por muitos e muitos anos, com saúde, alegria e sucesso. Sê feliz. Não deixes por menos!

2 comentários:

Quadratim disse...

Pensava eu que tinha perdido a fraqueza da comoção! Que melhor prenda para 54 primaveras do que atribuirem-nos a qualidade de bom amigo? Fora o resto, é claro... a recordação de muito do que se fez e se foi, embora por vezes tendo-se pouco - tão a propósito nos tempos que correm - trazem uma revelação da extraordinária capacidade de realização que só têm as pessoas invulgares: aquelas que são capazes de ler as primeiras letras de um garoto teimoso, de ouvir as primeiras notas de um melómano obsessivo, de ensinar os primeiros passos de dança a um pé-duro, de inventar modelos de roupa para um artista pobre, de desenhar os automóveis a um "piloto" de miniaturas de papel, de conduzir as primeiras tournées de um rapaz-de-palco em construção... enfim, de inventar os sonhos a quem, ao mesmo tempo, queria fazer sonhador. Grande alma, grande cabeça, grande Pessoa essa, sim, que meio século depois de tanta "cumplicidade" ainda tem no coração os corações que ensinou a bater a ritmo "allegro vivace". Privilégio? Claro que sim! Não há maior vaidade do que a obra saber-se concluída ao gosto do seu criador. Faz sentir que está no bom caminho. Que seja longo para ambos!

MSLS disse...

António Leal Salvado said...
Pensava eu que tinha perdido a fraqueza da comoção! Que melhor prenda para 54 primaveras do que atribuirem-nos a qualidade de bom amigo? Fora o resto, é claro... a recordação de muito do que se fez e se foi, embora por vezes tendo-se pouco - tão a propósito nos tempos que correm - trazem uma revelação da extraordinária capacidade de realização que só têm as pessoas invulgares: aquelas que são capazes de ler as primeiras letras de um garoto teimoso, de ouvir as primeiras notas de um melómano obsessivo, de ensinar os primeiros passos de dança a um pé-duro, de inventar modelos de roupa para um artista pobre, de desenhar os automóveis a um "piloto" de miniaturas de papel, de conduzir as primeiras
tournées de um rapaz-de-palco em construção... enfim, de inventar os sonhos a quem, ao mesmo tempo, queria fazer sonhador. Grande alma, grande cabeça, grande Pessoa essa, sim, que meio século depois de tanta "cumplicidade" ainda tem no coração os corações que ensinou a bater a ritmo "allegro vivace". Privilégio? Claro que sim! Não há maior vaidade do que a obra saber-se concluída ao gosto do seu criador. Faz sentir que está no bom caminho. Que seja longo para ambos!