Fundão

Desde que a mãe adoeceu, que venho com regularidade ao Fundão, cidade onde ela vive e onde nasci.
Sempre gostei de viver no Fundão, mesmo nos anos de descoberta, quando acabávamos o liceu e todos faziam já planos para ir para a Universidade, eu olhava essa hipótese com tristeza.
Talvez a minha timidez ou o medo dos lugares desconhecido ajudassem ao sentimento de perda que me invadia, quando pensava na partida.
Eu adorava subir a avenida com as minhas amigas, falar a todas as pessoas com quem me cruzava, estar à vontade em qualquer lugar, mas o motivo principal da minha apreensão era a quinta, a nossa casa e a minha família.
A quinta e a casa eram o meu porto seguro. Os meus pais e os meus irmãos eram o meu apoio, a minha âncora.
O primeiro ano em Lisboa foi muito difícil e o sofrimento da saudade, da solidão e das dificuldades a todos os níveis, só foi minorado com as vindas a casa nos fins-de-semana .
Vinha de comboio, demorava imenso tempo e o frio, a fome e o sono eram meus companheiros. Quando o Fundão se aproximava, eu saía do meu lugar, arrumava o meu saco e esperava em pé. Começava a sentir-me em casa.
Na estação, fosse o comboio à tabela ou muitas horas atrasado, como acontecia frequentemente, fosse noite amena, fria de rachar ou de temporal, estava sempre, mas sempre, o mesmo rosto à minha espera– o meu pai.
Raramente havia outra pessoa na gare, ao ar livre, mesmo à beira da via. À medida que o comboio afrouxava, os seus olhos procuravam-me e sorriam, quando me encontravam. Ajudava-me a descer, segurava-me a mão e o saco, abraçava-me com muita força e dizia uma graça que viesse a propósito.
E pronto… eu voltava a ser eu.
Nós habituamo-nos a tudo e eu habituei-me a Lisboa, a estar longe de casa e dos meus.
Hoje tenho a minha casa e as minhas coisas, mas não esqueço aquele aconchego da família que eu sentia nesse tempo.
Vir cuidar da minha mãe, ainda são 3 horas de viagem, são dois dias em que não posso tratar nada do que preciso, é algum sacrifício no orçamento mensal, entre outras pequenas coisas. Mas ver o Fundão, as serras, as pessoas conhecidas, ouvir o relógio da igreja, o sotaque fundanense… é matar saudades. Pena já não ter os abraços do meu pai à chegada e à partida, as suas piadas e as suas gargalhadas. Pena ver a minha mãe dependente do meu cuidado e dos meus cozinhados, quando ela era mestra na arte do tempero. Pena reviver a lembrar… não a viver.
Da janela, vejo passar as figuras tão conhecidas dos meus tempos de estudante e sorrio.
O Barreiros, no seu metro e meio, a quem conheço como único afazer o passeio pela avenida, (nunca lhe conheci profissão), com a sua pulseirinha de ouro no braço direito, o cinto das calças apertado quase no peito, as suas calças vincadas de quem nada faz e se preocupa em poupar o vinco quando se senta, mesmo ficando com meias e canelas à mostra, com o mesmo penteado há 30 anos e o mesmo ar de quem nos considera otários por labutarmos no dia a dia sem tempo livre para passear na avenida e estar na esplanada de canelas à mostra.
A Lurdes do Tó, (o Tó foi funcionário do meu pai durante 40 anos, começando por tomar conta do meu irmão Manel, mal acabou a escola primária), com o seu cabelo sempre acabado de fazer mise en plise, as suas roupas na moda (na moda do Fundão, entenda-se) e os seus pés nº 40, doridos dentro dos sapatos 38, onde pretende escondê-los e talvez encolhê-los, à força de tanto os domar, no seu caminhar altivo de chefe das empregadas de limpeza do hospital, lugar que conquistou por ter concluído o 2º ciclo, embora já em adulta e que exerce com mão de ferro.
A Dona Henriqueta da cooperativa, assim chamada porque o marido trabalhou ao balcão da mercearia da cooperativa do Fundão durante muitos anos e era conhecido pelo António da cooperativa. A Dona Henriqueta, também conhecida “da leitaria” por ter tido uma leitaria, não sei se depois, se antes de trabalhar na cooperativa, já vai nos 80 anos, mas faz questão todos os dias de não faltar à missa, de visitar as senhoras amigas e de dar a sua voltinha para esticar as pernas. Fala bastante, mas não houve nada… o que resulta uns diálogos interessantes quando vem visitar a minha mãe. Uma pergunta alhos e a outra responde bugalhos. No fim há sempre sorrisos e fica por isso mesmo, a conversa dos surdos.
Passam as viúvas cinquentonas que vão tomar café juntas, todos os dias, à mesma hora, ao mesmo café.
Passam senhoras a caminho do monumento (nome que ficou à estátua da Nossa Senhora de Fátima) a rezar o terço em ladainha mecânica e incompreensível, mas de fé inabalável.
Passam pessoas idosas com as suas bengalas, muitas bengalas… coxeando aqui e ali e além, mas recusando-se ficar em casa e entregar os pontos.
Mas não é este Fundão que eu revejo nas minhas lembranças.
É a minha quinta, com os meus irmãos e os meus pais. É a luz do verão nas vinhas, as macieiras carregadas de maçãs de variadas cores, os pêssegos aveludados e sumarentos, os morangos, as melancias, as peras. É a água transparente e fria do tanque, as roseiras do jardim a perfumar o ar, o Kid, o Snoopy e a Diana, cães Serra da Estrela, bonacheirões e de meiguice a contrastar com o aspecto, é a mesa posta na varanda, o barulho conhecido do pai a subir a escada em correria, os petiscos que a mãe, e só ela, sabia preparar (peixinhos da horta, ou seja, feijão verde frito, beringela e abóbora frita, chouriça cozida, carne de porco frita com muitos alhos, carapauzinhos fritos no palito, peixe em molho de escabeche, carne de vaca assada no tacho).
Agora, penso em tudo isto enquanto a minha mãe dorme a sesta, depois de ter almoçado o franguinho cozido com puré e a maçã cozida e espero que acorde para a levantar e sentar na sala à espera do jantar e da telenovela, única coisa que lhe dá algum interesse ver, para pedir que a deite de novo, esperando o nada que nunca chega, pela mão de ninguém. Eu faço o saco e regresso a casa. A vida continua.

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